Há mais de vinte anos, conversei com um senhor idoso,
pobre, solitário e doente. Ele morava sozinho na margem da lagoa de Iquipari e
sofria de asma. Disse-me que a natureza e ele conversavam. Perguntei como era
essa conversa. Ele então me respondeu que era preciso aprender e que eu, longe
da natureza nativa, demoraria muito a entender o que a natureza fala.

Creio que esse é um dos
maiores problemas da nossa civilização globalizada. Nós somos natureza pelo
nosso corpo. O mundo que criamos é povoado de objetos construídos com
matéria-prima obtida na natureza. O lixo que jogamos em latões, na rua, nos
rios e no mar são objetos usados e descartados, também provenientes da
natureza. Vivemos numa natureza modificada que nos afasta da natureza
autocriada. Alteramos o clima com nossas emissões de gases, e anualmente,
enfrentamos enchentes, secas, furacões, tufões, nevascas crescentes que atacam
nossas cidades e campos como se fossem aviões de guerra.
Os vírus também são
naturais. Eles estão aprisionados em animais silvestres que escapam para o
nosso mundo com a destruição dos ecossistemas em que vivem. Mesmo sendo criados
em laboratório, eles não deixam de ser natureza. Vindos das florestas ou dos
laboratórios, os vírus atacam o ser humano e encontram um ambiente altamente
favorável à sua propagação. Primeiramente, as grandes cidades, onde as pessoas
se concentram. No campo, a propagação é mais difícil. As cidades já aglomeram
pessoas, mas elas, se aglomeram mais ainda em encontros com vários fins.
Hoje, os vírus viajam de
avião e percorrem grandes distâncias sem serem vistos, sem precisar de
passaporte. Eles viajam no corpo humano, que viaja no avião. Eles temem as
vacinas, mas podem infectar as pessoas vacinadas com menos intensidade. Os
vírus adoram grupos humanos não vacinados. Circulando neles, os vírus sofrem
mutações e geram variantes, podendo exigir vacinas modificadas anualmente, como
é o caso do vírus da influenza.
Os vírus conseguem driblar
a vigilância dos mais experientes cientistas, como vem demonstrando o vírus do
sars-cov-2. Ele age quase do mesmo modo em toda parte do mundo, mas surpreende
virologistas, infectologistas, microbiologistas, imunologistas. Demora-se a
aprender as artimanhas de um vírus, partícula não-orgância nem orgânica que se
comporta como organismo. No início da atual pandemia, acreditávamos que ele
estava colado na sola dos sapatos, que ele vivia no chão e nas superfícies ao
alcance das mãos. Por enquanto, sabemos que ele se propaga pela respiração.
Mais ainda, o vírus adora
os negacionistas. Aqueles que desdenham a ciência; mesmo sendo cientistas e
médicos, comportam-se como curandeiros. Quando o governante de uma nação, ou de
entidade menor que ela, desdenha o vírus, as condições de multiplicação para ele
se tornam mais favoráveis. É o que vemos no Brasil, quando se afirma que o
vírus causa apenas gripezinha, quando se retarda o processo de vacinação,
quando se aproveita a pandemia para tirar proveito financeiro dela, quando se
minimizam os danos causados pelo vírus, quando a vacinação de crianças é
propositalmente demorado. O Brasil ilustra bem esse quadro.
Devemos ainda considerar
as desigualdades sociais como ambiente favorável à difusão do vírus. Os ricos
podem ganhar dinheiro à distância, protegidos da pandemia. Os pobres tornam-se
cada vez mais pobres e são alvos mais fáceis para o ataque dessa partícula cega
da natureza, desse ser/não-ser desprovido de ética. Ele não é um flagelo de
Deus, mas fruto das nossas ações. Entre Deus e nós, urge considerar um terceiro
elemento: a natureza e a nossa obra.
A natureza que nos
antecede pode ser agressiva, mas também, nos protege. Então, nossas obras
destroem a natureza e nosso mundo é invadido por sete demônios, como diz a
Bíblia. O velho Domingos, morador nas margens da lagoa de Iquipari, tinha
razão: precisamos aprender ou reaprender a conversar com a natureza.