No início do século XV, o ocidente iniciou o processo de globalização
atual do mundo sem saber que inaugurava esse processo. As doenças acompanhavam
os ocidentais quer em seus próprios corpos quer nos animais embarcados, oficial
ou clandestinamente, nas caravelas. No contato com povos da América e da
Oceania, essas doenças encontraram campo virgem para se desenvolver. Milhões de
pessoas morreram ao contraírem gripe, sarampo e varíola, principalmente. Esse
genocídio não mereceu o mesmo destaque que os dos judeus e do armênios.
Hoje, o ocidente está em todos os rincões do mundo. Por mais que
encontremos traços culturais locais, a economia é a mesma, ou seja, uma
economia de mercado que se combina com democracia e com autoritarismo, riqueza
com pobreza. Em seis séculos, a complexidade aumentou de forma exponencial.
Quanto mais complexo, mais vulnerável é um sistema.
Combinemos essa vulnerabilidade com as três características básicas da
economia de mercado: o consumismo, o individualismo e o imediatismo. Um dos
segredos da Finlândia em enfrentar a pandemia causada pela Covid-19 foi o hábito fazer estoques desde o fim da
Segunda Guerra Mundial. Hoje, o imediatismo abomina a estocagem. Ela ocupa
espaço e se torna obsoleta. É mais fácil fazer encomendas pouco antes do
esgotamento dos estoques. Para tanto, é preciso previsibilidade. Se ocorrer um
evento imprevisível, os centros produtores não dispõem de tempo para atender
aos pedidos. É o que está acontecendo na atual pandemia. Os centros produtores
não conseguem produzir equipamentos de proteção individual, respiradores,
oxigênio, relaxantes, produtos com princípio ativo e principalmente, vacinas. A
rede hospitalar não dá conta de atender a pessoas infectadas.
Outro calcanhar-de-aquiles da globalização é a especialização de áreas
produtoras. Alguns países estão se especializando no fornecimento de produtos
primários, as chamadas commodities. A China e a Índia são os grandes produtores
de equipamentos e insumos. Se alguma catástrofe climática ou algum excesso de
demanda pressionar uma dessas áreas, o que se torna cada vez mais frequente,
ela não conseguirá abastecer devidamente os consumidores. Num mundo com quase
oito bilhões de habitantes, torna-se praticamente impossível atender a todos,
de imediato, com equipamentos, insumos e vacinas.
Outra vulnerabilidade é a rapidez das comunicações e dos transportes. Se
a peste negra se disseminou em 15 anos na Ásia, Europa e norte da África,
viajando a pé e a cavalo; se a Gripe Espanhola
viajou de navio, o vírus sars-cov 2 viaja de
avião. Os voos internacionais o transportam de um país para outros. Os voos
domésticos se incumbem de disseminá-lo dentro de cada país. Notemos que as
áreas mais afetadas do mundo no inicio da pandemia situam-se no hemisfério
norte: China, Japão, Europa Ocidental e Estados Unidos. Agora, ela castiga
países do sul, como Brasil e Índia.
Mais uma vulnerabilidade da globalização é a falta de ação coordenada. A
economia unificou o mundo, mas ele continua dividido em estados nacionais. A
Organização Mundial de Saúde é a entidade que representa essa ação coordenada.
Mas nem todos os estados nacionais seguem sua orientação. Vejamos o caso do
Brasil e da Índia, onde os governos centrais contribuem para a disseminação do
vírus.
A economia age de forma contraditória. No afã de crescer e de obter mais
lucros, ela invade e destrói áreas que deveriam ser protegidas. Essa invasão
libera organismos patogênicos que geram epidemias e pandemias. O vírus é um
organismo muito simples que sabe como agir sem saber que sabe. As epidemias e
pandemias reduzem a velocidade da economia. Em síntese, a velocidade gera a
redução da velocidade, como numa caixa d’água: quando vazia, a água a enche com
velocidade, mas a boia a paraliza ao ser alcançado o nível de transbordamento.
O vírus da Covid-19 está atuando como a
boia. Ele está anunciando que o sistema global é vulnerável e está
ultrapassando limites. Convém repensar profundamente os rumos da globalização
quando e se a pandemia for controlada.