Li uma reportagem sobre a tentativa de
reprodução do muriqui em Ibitipoca. A mata é habitada por dois machos. Além da
pressão que nós humanos exercemos sobre os fragmentos da Mata Atlântica, muito
pequenos para garantir a sobrevivência dos animais, continuamos nossa marcha
devastadora para abrir terras destinadas à agropecuária e às cidades. Os
primatologistas conseguiram uma fêmea de muriqui para acasalar-se com os dois
machos, também condenados a morrer sem descendentes e ainda de morrer mais
jovens com febre amarela.
Os muriquis não são monogâmicos. Era de
se esperar que a macaca acabaria fecundada por um dos dois machos. Mas ela não
quis saber deles. A macaca gostava mais de gente e de cavalo que de machos da
sua espécie. Ela desapareceu. Não se sabe se está perdida ou se morreu.
A reportagem foi publicada na “Folha de
São Paulo” de 11/02/2018. Ela mostra o dilema do jornalista de ciência. Por um
lado, ele tem de escrever de forma fácil para o leitor leigo. A macaca é comparada
a Dona Flor e seus dois maridos, de Jorge Amado. Os cientistas queriam que ela
vivesse com dois maridos e acabasse grávida. Mas, para ela, não é não, lema das
feministas que estão combatendo o assédio sexual. Talvez toda essa ginástica
não funcione, porque a maioria dos humanos não quer saber do mundo para além da
humanidade. Poucos leem matérias sobre ciência, a menos que ela trate de nós.
Os cientistas também não darão muita importância a esse tipo de matéria. Ela
não prima pelo rigor científico.
O muriqui é a maior espécie de primata
de todas as Américas. Ela pertence a nossa família. Quem não aceita a relação
familiar, mesmo que distante, repudiará a reportagem por insinuá-la que viemos
do macaco. Quando eu ainda estava em sala de aula, podia falar em luta de
classe e justiça social, mas, se penetrasse no evolucionismo darwinista, logo
vinha a pergunta: “Professor, o senhor quer dizer que viemos do macaco?”
Geralmente, eram alunos evangélicos, mas também católicos. Eles aceitavam o
marxismo. Alguns deles até se diziam marxistas. Era compreensível. A matriz do
marxismo é o cristianismo, embora os marxistas integrais, no seu ateísmo, não
admitam a aproximação entre uma visão de mundo que eles consideram escapista –
o cristianismo e qualquer outra religião – e uma visão que condena o ópio do
povo.
De tanto receber a pergunta sobre nossa
ancestralidade com o macaco, certa vez irritei-me com uma aluna loirinha.
Respondi que não apenas descendíamos do macaco como, na verdade, éramos macacos
que não deram certo e que ela era uma mica-leoa-dourada. A moça se ofendeu e
vários alunos lhe prestaram solidariedade. Passada minha fúria, pedi, de
público, desculpas à moça. No fim do semestre, nossas relações eram cordiais.
Ela achava carinhoso eu chamá-la de mica-leoa-dourada.
Mas de volta aos macacos americanos,
eles enfrentam um momento muito difícil. Nós estamos roubando a casa deles.
Encurralados, eles estão encontrando dificuldades de alimentação e reprodução.
Quase ninguém se importa com o drama de cada espécie. Os macacos são
fundamentais para a saúde ambiental. Eles semeiam e ajudam a manter a floresta.
E o grande perigo que enfrentam agora é a febre amarela. Percentualmente, têm
morrido mais macacos que pessoas. E das várias espécies, principalmente o
barbado. Para piorar suas já críticas condições de existência, as pessoas estão
ajudando os mosquitos na morte dos macacos.
Tem sido inútil explicar que os macacos
são tão vítimas do vírus da febre amarela quanto às pessoas. Mais uma prova da
nossa proximidade filogenética. O vírus já está presente no Haemagogus e no Sabethes, mosquitos
silvestres. Eles picam humanos e macacos, transmitindo a doença. O macaco pode
ser contaminado, picado e passar a doença para um humano, que pode também ser
contaminado, picado e passar a doença para os macacos.
Na África, as várias espécies de macacos
parecem ter desenvolvido resistência à febre amarela por conviverem há muito
tempo com ela. Os macacos americanos, que procedem da África por um caminho,
para mim inimaginável, ainda não desenvolveram anticorpos ao vírus. Não podem
ser vacinados porque a vacina não funciona neles, podendo até matá-los. É muito
difícil capturar macacos nas matas para alojá-los em local protegido dos
mosquitos, como jaulas cobertas de mosquiteiros.
Os primatologistas já pensam num plano
nacional para a proteção dos macacos em relação à febre amarela. Eles
pretendem, inicialmente, convencer a população quanto a importância dos
primatas para a floresta e para as pessoas. O macaco dá o sinal de que a febre
está por perto. Ou será que quem está muito perto das matas é o homem, que
invade com facilidade a casa dos macacos?
Em casos extremos, até transplante de
fígado se usou em pessoas contra a febre amarela. Solução muito cara que pode
simplesmente ser substituída por vacina, também muito mais barata que uma
cirurgia cara e de alto risco. Mas, para o macaco, nada. Nosso imediatismo e
individualismo não permitem que pensemos na importância dos macacos em nossas
vidas. Em mais uma situação, vejo a situação do mundo não-humano com pessimismo
e melancolia. Talvez, só percebamos a importância da natureza não-humana em
nossa vida humana quando ela tiver sido reduzida a zero ou a porções mínimas.